Por um feminismo de irmãs de terra

Tradução do Manifesto escrito por María Sanchéz e Lucía López Marco.

Estela Rosa
4 min readMar 7, 2019
Ilustração por Cristina Jiménez.

A primavera se intui, e há uma semente que germina e que luta por crescer. Sozinha, começa a abrir caminho, rompendo a terra, pouco a pouco, ao ritmo do sol, irá crescendo. Mas para nascer e crescer também necessita de água. E se a água não chega, lutará para encontrá-la.

Irmã,

nós,

também somos assim. Abrimos caminhos como as sementes. A primeira vista parecem invisíveis, mas crescem com a força de nossas vozes em um território cheio de vida que não deixa de tecer comunidade graças a nossas mãos e nossas palavras.

Também somos parte da vida de nossos povos: cantiga, raiz, batidas do coração. E como essas sementes que se embolam na lã das transumantes para germinar a milhares e milhares de quilômetros de seu lugar de origem, resistimos e lutamos. E olhamos para as que nos precederam e sabemos porque não podemos mais nos calar.

Dizem que o 8 de março é de todas.

Mas o que se reflete nos meios e nas redes não faz parecer ser assim. Porque muitas vezes ficamos na superfície e não vamos além das cidades, e de nomear e celebrar mulheres de círculos estritamente culturais.

Onde ficam as mulheres rurais? Como? Como tirar da sombra o que não se conhece? Como valorizar as mãos que trabalham mas que, ao olhar de muitos, seguem sendo invisíveis?

As mulheres rurais, neste sistema capitalista, tecnocrático e urbanocêntrico, temos sido sempre duplamente marginalizadas, duplamente esquecidas: por sermos mulheres e por sermos rurais.

Mulheres rurais,

irmãs de um filho único, mulheres de, filhas de, irmãs de, netas de, sobrinhas de…

Sempre na sombra, mas levando todo o peso. Donas de nada, mas responsáveis por tudo.

Já é hora de render homenagens ao trabalho e ao suor de mulheres como nossas avós e nossas mães, que tanto trabalharam a terra e carregaram suas mochilas ao mesmo tempo em que cuidavam da casa na sombra, no mais absoluto silêncio.

Há que nomeá-las uma a uma.

Servir de alto-falante para que suas vozes retumbem.

Contar que também foram: que são e serão mulheres fortes da terra que a maioria das vezes não puderam sequer escolher ou decidir. Que à base de renúncias, crescendo em uma casa construída sobre fundamentos de desigualdade e machismo, abriram a vereda para nós outras.

E não:

tampouco nos esqueceremos daquelas que hoje, ainda que queiram, não podem fazer greve nem vir à manifestação.

Porque seguimos sendo nós as que cuidamos: das pessoas, dos rebanhos, das plantações, dos campos e dos bosques. E — como não — não podemos nos esquecer de todas essas companheiras imigrantes que trabalham em situações precárias cheias de abuso e machismo em nosso território. Elas, mulheres, rurais e imigrantes, triplamente marginalizadas.

Insistimos.

Já é hora de mudar a forma de olhar.

Sempre estivemos aqui. Trabalhando a terra, cuidando, sendo a raiz invisível, mas essencial para que o lar permanecesse de pé.

Apesar das dificuldades enfrentadas pelas mulheres que nos precederam e das dificuldades que seguimos enfrentando agora.

Não, não precisamos que ninguém nos salve.

Queremos espaços e alto-falantes: Estamos aqui, estivemos: queremos seguir estando.

Queremos que o Estado não pense só em satisfazer as demandas das cidades, porque nós também precisamos de serviços básicos. Queremos poder decidir se partimos ou ficamos. Queremos deixar de ser cidadãs de segunda. Queremos soberania alimentar, pecuária extensiva e agroecologia. Queremos criar comunidades, mantê-las, ajudar-nos sempre umas às outras. Sentir-nos reconhecidas e amparadas.

E queremos ser exemplo para as meninas do futuro, sejam ou não nossas filhas ou nossas netas. Queremos dizer a elas que esta também é sua terra. Que esta cultura cheia de animais, árvores, territórios e pessoas também é delas. Que daqui viemos e é para aonde vamos. Porque não queremos partir. Porque acreditamos que outras formas de vida, de relações e de produção são possíveis, para além desse sistema explorador, e que nossas margens têm muito a ensinar e a nutrir.

auzolan em euskera (basco),

a vecinal em aragonês,

facendera em leonês,

sestaferia em asturiano,

roga em galego,

a tornallom em valenciano,

a cumuña em cântabro,

treball a joya em catalão,

a vediau em aranês…

Trabalhos comuns, mãos que cuidam e ajudam. Uma forma natural de trabalho para realizar muitas tarefas do campo ou do entorno rural, em geral, que alimentavam e davam vida a nossos povos.

Agora, mais que nunca, temos que recuperar estas palavras, e — sobretudo — dar vida de verdade a tudo o que estas palavras de nosso território contêm.

Temos que seguir tecendo redes no meio rural, contar, falar, alçar a voz, ajudar-nos umas às outras. Fazer parte da raiz e dos galhos.

Porque nosso território não está vazio, por mais que tenham se empenhado em esvaziá-lo.

Porque seguimos aqui, porque estamos vivas aqui.

Por um feminismo de todas,

por um feminismo de irmãs de terra.

***

Você pode aderir ao manifesto original aqui. Juntas, vamos melhor.

***

A ilustração é de Cristina Jiménez. Você pode baixar para imprimir aqui.

(Este Manifesto foi escrito por Lucía López Marco e María Sánchez. Graças aos conselhos e anotações de Patricia Dopazo, Anna Gomar, Blanca Ruibal e Elena Medel. E a tantas outras mulheres que nos enviaram suas colaborações.)

Tradução ao Português: Estela Rosa.

***

Manifesto em outras línguas:

em espanhol

em aragonês

em catalão

em inglês

--

--

Estela Rosa

Poeta e caipira, curadora da Mulheres que escrevem. Mestranda em Literatura-UFRJ e autora de Um rojão atado à memória (7 Letras) e Cine Studio 33 (Macondo).